O velho sai do cemitério, atravessa a rua, para e se volta. Olha o frontispício da construção como se o encarasse pela primeira vez. Não distingue com nitidez as letras esculpidas na parede, nem precisa disso. Na memória e no espírito estão fixados há anos cada uma delas e a frase que formam.
CEMITÉRIO DA SAUDADE
Retoma a caminhada, é interrompido.
- Vô, me dá um dinheiro... é pra mim tomá café.
O pedinte é negro, deve ter dezesseis, dezessete anos, e o que ressalta na figura esquelética são os dentes estragados. As roupas maltrapilhas e os chinelos emolduram um corpo deplorável e malcheiroso.
O velho interrompe os passos, mas não demonstra surpresa nem medo. E é com voz mansa que condiciona.
- Dou, sim. Mas quero uma coisa em troca. Quero que você leia aquilo que está escrito lá na parede, acima da porta.
- Sei ler não, vô.
Os olhos do velho observam o outro e, sem desviar o olhar, enfia a mão no bolso interno do paletó branco, retira uma cédula de cinco reais e a entrega aos olhos espantados do rapaz, acostumados às moedas de dez centavos.
- Brigado, vô.
- Vamos sentar naquele banco, conversar só um minutinho. Qual é a graça do jovenzinho?
- Sei fazer graça nenhuma não, vô.
- Quero que você fale o seu nome.
- Carlão...
- Só isso?
- Só isso... Não sei mais nada não. O senhor foi nalgum enterro?
- Não, não fui não.
- É que eu vi o senhor saindo do cemitério.
- Pelo menos uma vez por mês eu venho aqui, caminho por entre os túmulos. É meu jeito de refletir sobre a morte.
- Cruz credo... não gosto nem de pensar nisso. Não entro ali nem arrastado.
- O jovenzinho tem medo de quê?
- Sei lá... não gosto de falar de cemitério, de defunto, de morte... Eu já vou indo... Brigado, vô.
O velho Chico Franco acompanha com os olhos a caminhada apressada do rapaz. Fica um tempão sentado ali, na Praça Carlos Pacheco. Aparentemente descansa, mas o que faz é uma tentativa de recordar detalhes de texto explicado em sala de aula pelo professor Luís Martins Filho. Lembra vagamente a história.
Um monge quase centenário agoniza, e é velado por uma dezena de jovens religiosos cuja seriedade e preocupação estão estampadas nos rostos porque a hora é formidável. Durante a agonia, por três vezes o moribundo abre os olhos, olha os circundantes e sorri.
Intrigado, um monge muito jovem domina o medo, aproxima-se do catre e indaga a razão daqueles sorrisos. O velhinho explica:
- A primeira vez eu ri por ver o temor que vocês têm da morte. A segunda vez eu ri porque sei que vocês não se preparam para ela. E a terceira vez eu ri porque estou indo descansar, e vocês vão continuar trabalhando feito burros de carga.
Após um tempo, o velho Chico se apóia na bengala, levanta-se, caminha em direção à Rua do Comércio. Ao passar diante do consultório do doutor Cirilinho Barcelos, cumprimenta pessoas, descobrindo-se.
Caminha sem pressa, murmurando palavras inaudíveis. Três quarteirões adiante, ao cruzar com uma senhora, desabafa.
- Lembrei, lembrei. O texto é do padre Manuel Bernardes.... Os três risos... Está no livro Nova Floresta... Lembrei, lembrei.
A mulher olha assustada para o velho e, mesmo já tendo cruzado com ele, muda rapidamente de calçada.
Olha de soslaio e se benze.