Em passos muito lentos, Chico Franco desce a Rua Voluntários da Franca em direção ao centro. Passa pouco das sete horas, as calçadas estão quase desertas, porque as casas comerciais ainda estão fechadas. Agora existe a determinação de só abrirem após as nove horas.
Chico caninha, para, examina, recorda.
- Ali ficava a fábrica de sapatos dos Licursi, aqui era a Casa Cerqueira Pucci. Ali era a Farmácia São Sebastião, do Leonildo Foroni.
O homem atravessa a Rua Gonçalves Dias, para e fica, um tempão, olhando para algo que só ele enxerga: a serraria enorme, que depois virou Balau Madeiras. Volta-se e vê, do outro lado da rua, a funerária do Ivon Rodrigues Pereira.
Nesta hora a Rua da Estação fica cheia de gente: o governador Jânio Quadros está em Franca, veio batizar a filha do Ivon.
No quarteirão seguinte, Chico Franco interrompe a caminhada e, sem sair da calçada, adentra as dependências da Farmácia Santa Terezinha. Leva a mão ao chapéu, descobre-se respeitosamente.
- Bom-dia, Senhor Anésio.
- Bom-dia, Chico. E sua mãe, como está passando ?
- Sarou, senhor Anésio. O remédio que o senhor deu curou a mãe na hora. Foi como se o senhor tivesse tirado a doença com a mão. No dia dez venho pagar o senhor.
- Está bem, Chico. Vai com Deus.
- Obrigado, senhor Anésio. Fica com Deus também.
O devaneio é interrompido.
- Que é isso, Sô Chico? Falando sozinho?
O retorno à realidade é lento. Primeiramente o velho se volta para a voz alegre que espanta o passado. Depois são os olhos que ficam muito abertos, maneira de interrogar. Em seguida são os lábios que tremem ligeiramente, a boca demorando a articular. Finalmente acontece a reação oral.
- Hein ? Não... não. Estava aqui... lembrando coisas.
- Lembrança é o que não falta, hein Sô Chico.
- Mas, se mal lhe pergunto, qual é a graça da jovem?
- Não diga que esqueceu de mim. Sou a Mirair, nora do senhor Anésio Foroni.
- Virgem! É mesmo... é a menina Mirair. Mil perdões, menina. Acho que estou perdendo a vista... como posso não ter reconhecido a menina que me atendeu tantos anos aqui na farmácia ?
- Isso é normal, Sô Chico. Faz muito tempo que a gente não se cruza.
- É verdade. Como vai a menina?
- A menina já não é menina mais, mas a gente vai navegando... Como diz o poeta, é preciso navegar.
- É verdade. Eu estou aposentado, sabia?
- Sabia, Sô Chico. O senhor está indo pra onde?
- Estou indo pra cidade. Todo dia faço isso. Saio de casa, caminho até a Praça Barão, depois volto. Nunca vou de ônibus. Vou e volto a pé. Isso é bom para o coração.
- Então vamos descendo... estou indo ao supermercado. Tempo bom aquele da Farmácia Santa Terezinha, não era?
- Ah, se era... eu comprova, só precisava pagar quando recebia o pagamento... Todo mundo pagava a conta no começo do mês.
- Os fregueses da roça só pagavam a conta uma vez por ano, na colheita do café.
- Tempo bom. Agora a gente paga adiantado para depois receber o remédio...
- Bem, Sô Chico, eu fico aqui. Vou comprar algumas coisas.
- Aqui?
- É. Aqui agora é supermercado.
- Antes era o Depósito de Bebidas Blóis.
- Era. Era de propriedade do senhor Nélio Zanardi Pêra. Até outro dia, Sô Chico.
- Até, menina Mirair.
Ao se despedir, o velho leva a mão ao chapéu, descobre-se por inteiro, ameaça inclinar o corpo, mas a senhora já caminha depressa para o supermercado. Então ele continua a caminhada lenta. Atravessa a ponte, namora por minutos a água que jorra em espécie de pia, esquece depressa que ela está canalizada, canta baixinho
Eis as Três Colinas
Na retina sem fim
E a Água da Careta
Corre dentro de mim...