O relacionamento afetivo entre mim e o avião faz lembrar pedaço de canção interpretada por Lindomar Castilho:
Nós somos dois sem-vergonhas
Em matéria de amar
Você, porque vai e volta
Eu, por te deixar ficar.
Nossa relação é de ódio e de necessidade e urgências. De quando em quando, caminho para suas entranhas, sentindo-me boi tangido para o matadouro. Caminho bovinamente para suas asas, quando a pressa não tem tempo nem disposição para achar outras estradas.
As estatísticas asseveram que estou utilizando o mais seguro meio de transporte. Não me convencem, todavia, nem amenizam o temor sólido que altera minha pressão e bambeia minhas pernas. E o pior é que, basta sentar-me, afivelar o cinto e experimento terrível incontinência urinária.
Tudo isso me tem tornado protagonista de cenas, hilariantes para os outros; vexatórias para mim.
Uma vez, tive de viajar com o amigo Gilmar a Brasília. Tomamos o avião em Riberião Preto. No momento do embarque, ao pé da escadinha de acesso à aeronave, havia um sujeito uniformizado desejando boas-vindas aos passageiros. No seu crachá, pude ler: Comandante Pane. Empaquei, e só entrei no avião porque o Gilmar era muito mais forte que eu.
Semana passada, urgência urgentíssima me levou a Belo Horizonte. Embarquei em Ribeirão Preto e, mal alçamos vôo, uma voz e mil ruídos informaram que enfrentaríamos alguma turbulência. E, daí a pouco, o avião corcoveava, meu estômago dava voltas, a palma de minha mão se umedecia de suor. Enquanto isso, a mulher ao lado contemplava e comentava a beleza das nuvens, suas variadas densidades.
Descemos no Aeroporto da Pampulha, não esperei pela guia. Desembestei rumo ao terminal, só parei diante da palavra enorme: sanitários. O diabo é que havia duas portas e nenhum letreiro. Só enxerguei dois desenhinhos azuis, muito parecidos. Como tinha pressa, optei pelo da direita. Um minuto depois, ouvi a advertência.
- Você entrou no banheiro feminino.
- Agora já foi.
No retorno, no mesmo dia, mal o monstro terminara seu trabalho ascendente, voz e ruídos comunicaram que o serviço de bordo estava suspenso porque enfrentaríamos turbulência ao longo da viagem.
Tivemos turbulência, eu tive de viver novo suplício, mas chegamos a Ribeirão Preto sãos e salvos, afora os machucados na autoestima. Começava a chover, exatamente à hora do desembarque.
De pé, à espera de que liberassem a porta e nos libertassem, ouvi diálogo entre a aeromoça e o rapaz que encaixava a escadinha à porta do avião.
- Não tem ônibus. Vou entregar guarda-chuvas.
Desci a escadinha, peguei o guarda-chuva, disparei em direção ao terminal. Sequer reparei na mocinha ao lado da porta. Ela correu atrás de mim.
- Senhor, senhor... O senhor não devolveu o guarda-chuva.
- Pensei que era brinde respondi, andando.
E entrei no banheiro.
Quinze minutos depois, estava acomodado no carro de amiga. Ela e sua companheira de viagem, acometidas de incontinência verbal, não se calaram sequer um instante.Falaram de Deus e do mundo todo em pouco mais de uma hora de viagem.
Eu, misantropo por natureza, recolhi-me a meu canto, vim fazendo promessas de nunca mais entrar em avião.
Luiz CRuz