- Hoje não é amanhã, né, vovó?
Ele interroga para imediatamente afirmar:
–Hoje não é amanhã.
Retomo, tentando alinhavar pensamentos soltos:
– Hoje é hoje.
Ele refaz:
– Hoje é sábado.
– Como você sabe?
– Não tem escola.
– O que mais, no sábado?
–Você me leva no shop. Eu como mc. Brinco de fazendinha... Eu vou no parquinho. E ando de trenzinho e pica-pau.
Eu o escuto e ao meu coração todo disparado diante daquela vozinha que continua a desfiar histórias.
– O Gat não jogou a caixinha do mcfeliz no lixo, vovó, jogou no chão; ele empurrou o copo de suco e derrubou; depois pisou na patinha do Totó; e pôs fogo no pasto lá no Goiás. A mãe dele ficou brava.
– Ah, ela teve razão. Esse Gat parece terrível. E qual o nome da mãe dele?
–É um nome beeeem bonito: Clipses.
– Que diferente. Não conheço nenhuma mãe chamada Clipsis.
– Não é Clipsis, é Clí-pe-ses. Ela tem olho azul, igual o do Gat. E cabelo cor de lalanja.
–E o pai dele, como se chama?
– Gat também. O irmão é o Lindus.
– Lindo.
– Lin- dus! O Lindus tem medo de leião, eu não tenho. Só tenho medo de riçoneronte .
–Você quis dizer leão e rinoceronte.
–É, leião e riçoneronte.
– De cavalo você gosta.
– De cavalo e de vaca. Na fazenda do vô Ronaldo e vó Nena tem.
- Você até ganhou uma vaquinha de seu pai...
– Ela tá lá na fazenda; na fazenda não... Como chama mesmo?
–Chácara.
– É, na chácara da vovó Marta. A vaquinha vai ter um bezerrinho.
– Quem vai cuidar?
– O fadenzeiro.
– Você quis dizer fazendeiro.
– É, o fadenzeiro.
– Tá. Você tem de organizar e guardar seus brinquedos, porque nossa viagem está chegando.
– A gente vai na lodoai?
–Como?
– Na lodoai!
–???
– Na roda. De vidro.
–Ah, você está falando da roda gigante, da London Eye...
– É, a londoai. Vai caber todo mundo?
– Vai sim: papai, mamãe, Juju, madrinha Maira, você e eu.
– E o Gat. E o Lindus.
–Tá bom. Vai o Gat. Vai o Lindus... Pode chamar.
–Chama você, vovó.
–Onde eu os encontro?
–Aí, do seu lado. Olha eles aí! Olha, vovó!
Faço de conta que reconheço os seres nascidos da imaginação dele e os convido. Depois penso nessa criatividade que ressalta o prazer da palavra e perfila de forma tão vívida amigos invisíveis aos olhos adultos saturados de realidade. Reflito sobre o processo implacável e irrecorrível do tempo que João começa a decifrar nos seus três anos e dois meses. E torço para que não se deixe calendarizar, continue vivendo assim, num continuum onde o que importa e tem relevância é o momento, prioridade máxima a ser usufruída em cada segundo, com prazer, intensidade e sonhos. Postergar, pra valer, só algumas delícias mui calóricas que a mãe Milena, atenta à nutricionista, reservou para único dia da semana: amanhã.
– Vó, amanhã é amanhã.
– Amanhã é domingo.
– Domingo é bom. Eu gosto de domingo. Meu pai fica em casa. A gente faz programa de meninos. Pode comer pastel na feira, só um. Pode comer chocolate, só um. E pão de queijo, só um. Pode tomar sorvete na casquinha, só um também. Hoje não é amanhã, né vó?
– Não é. Hoje é hoje, amanhã será amanhã.
Ele repete o que eu digo, e o ouvindo, de repente percebo como frases prosaicas e desgastadas, pelo milagre da voz infante reverdecem dentro de mim, com suas dimensões opostas e irreconciliáveis: tudo tão simples e ao mesmo tempo tão complexo. Nesta hora, em que me ocorre o horror às platitudes, vem em meu socorro Samuel Johnson: ” O que é óbvio nem sempre é conhecido, e o que é conhecido nem sempre está presente.”
E continuamos a brincar. Transitamos.
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PS- Entro em férias. Durante o mês de outubro o caderno Nossas Letras não circulará.
Sônia Machiavelli,
professora, jornalista, escritora