O armário agora é recém pintado na cor gelo.
Os seus puxadores foram restaurados e mantêm o mesmo modelo antigo.
O quarto também foi restaurado, as camas velhas desmontadas, as roupas doadas, e os objetos pessoais guardados no baú velho do quarto dos fundos.
Agora tudo renovou, o cheiro antigo se esvaiu e o quarto após a reforma foi destinado a mim.
Relutei muito em aceitá-lo por motivos os mais diversos, mas principalmente porque não me julgava digna de me apossar dele.
Para dizer a verdade, levei alguns anos para um dia deitar e dormir uma noite inteira nele.
Agora é meu quarto, com objetos novos, a poltrona vermelha decorativa, cama e colchão novos, gravuras de Paris e como objeto de decoração, diversas corujas as quais são as minhas preferidas.
Ali deitada, olho para o teto e para os lados. A noite ainda cercada por medos antigos, fantasmas infantis, só durmo com uma luminária irritante que à meia luz clareia o breu de um quarto que sinto ainda não me pertence.
Quando o adentro, caminho pelos seus tacos de casa antiga, abro a sua janela fora de moda, sento-me na nova cama e aspiro o ar que agora só tem o meu cheiro.
Mas hoje, de repente, abri o seu armário antigo, aquele pintado de gelo, de madeiras de lei do passado e das gavetas profundas, como não se faz mais no mundo atual de espaços restritos.
Arrumando as toalhas e abrindo mais espaço para me instalar com o conforto do quarto alheio, abri uma das últimas gavetas e de repente achei um álbum de fotos antigas.
Sentei-me na cama e comecei a folhear este álbum amarelado que trazia o cheiro das antigas proprietárias deste quarto.
Então, de repente, a vida delas aos poucos veio me passando pelos olhos naquelas páginas em preto e branco. As roupas anos 40, os cabelos à Rita Hayworth, os scarpins de bicos finos, os vestidos à Grace Kelly, as amigas de braços dados caminhando na Av. Paulista dos anos 50.
Eu também as vi de maiô em São Vicente em um passeio com vários amigos; as vi posando em cima da pedra na praia de Santos, sorrindo deitadas na areia e abraçadas com um amigo ou namorado, não sei ao certo.
Eu as vi, eu vi a sua juventude feliz, a sua beleza intacta, a esperança no olhar. E principalmente, a ignorância do futuro a que todos estamos destinados.
Fechei o álbum de coração perdido. Porque me lembrei de que as vi depois velhinhas e doentes neste mesmo quarto que agora eu ocupo.
Eu as vi sofrer as dores da velhice e até mesmo da solidão, que é o pior dos males da vida. Solidão de pessoas e principalmente da compreensão das pessoas.
Então, com o coração apertado, voltei mansamente o álbum para a gaveta do fundo e o guardei com carinho.
Não sei se tenho o direito de usar este quarto que me designaram, mas se o álbum foi o único objeto não destruído na alucinada transição desta vida, é porque este ambiente ainda pertence a elas, e eu o usarei com respeito devido, procurando trazer para este quarto um pouco daquela alegria juvenil que levaram em vida.