Chama-se literatura de viagem à produção de valor documental que registra deslocamentos no espaço, descobertas de paisagens e tipos humanos. Desde a chegada de Colombo à América, artistas viajantes percorreram com telas, tintas, pincéis, papel e caneta o território até então ignorado. Seus objetivos eram fixar flora, fauna, rios, nativos, costumes, organização social em formação. Entre os séculos XVI e XIX, descrições e imagens comporão no imaginário europeu o Novo Mundo e, dentro dele, o Brasil. Inicia-se a coleta de elementos capazes de inspirar, especialmente a partir da Independência, o desejo dos brasileiros de contarem sua própria história.
O alemão Hans Staden (1510-1576), com suas Aventuras, inaugura o gênero ao traduzir em desenho e narrativa suas peripécias com os tupinambás que quase o devoraram. Frei André Thevet (1502-1592) acompanha a expedição de Villegaignon e produz Singularidades da França Antártida. O pastor calvinista Jean de Léry (1536-1613) conta uma História de Viagem Feita à Terra do Brasil. Outros, menos notados, seguem a mesma trilha.
Um século depois os holandeses Albert Eckhout(1661-1666) e Frans Post (1612-1680), contratados para integrar a comitiva de Maurício de Nassau, governador de Pernambuco, registram o que veem sob a ótica da escola flamenga. Telas de grandes dimensões mostram na clave naturalista flores, frutos, objetos, tipos humanos.
A transferência de Dom João VI (1767-1826) e sua Corte ao Brasil, em 1808, enseja a abertura dos portos às nações amigas, o que facilita a entrada de levas de artistas. Organizada pelo conde de Romanzov (1754-1826), entre 1815 e 1818, a expedição russa Rurick tem entre seus integrantes o pintor Louis Choris (1795-1828) que fixa na tela o primeiro casario da ilha de Santa Catarina. A missão austríaca de 1817, formada por ocasião do casamento de Leopoldina (1797-1826) com Dom Pedro (1798-1834), traz cientistas e pintores destacados para revelar o país ao estrangeiro. Integram o séquito da arquiduquesa, o zoólogo von Spix (1781-1826) e o botânico von Martius (1794-1868). Spix e Martius descrevem a natureza e a vida social brasileira de forma minuciosa em Viagem pelo Brasil, obra cujos três tomos são editados em 1823, 1828 e 1831, respectivamente. Outra importante expedição, sob a liderança do barão alemão Von Langsdorff (1774-1852), conta com artistas como o desenhista topógrafo Hercule Florence (1804-1879), autor de aquarelas sobre o ambiente natural e social do Brasil da época; o pintor Rugendas (1802-1858), que registrou os desafios da trajetória em Viagem Pitoresca pelo Brasil; o pintor Adrien Taunay (1802-1828), que descreveu aspectos da vida dos índios bororo.
Todas essas expedições parecem ter preparado terreno para a vinda da Missão Artística Francesa, que chega ao Rio de Janeiro em 1816, contando com a participação de muitos artistas estrangeiros, entre eles Jean-Baptiste Debret (1768-1848). Ele vai diferir dos colegas pelo tempo prolongado que permanecerá no Brasil. Por conta de 15 anos de vivência brasileira, estabelecerá vínculos com os locais , de forma que sua contribuição para a construção de um repertório visual e factual acerca do País será tão vasta quanto expressiva.
Desde o primeiro momento de sua chegada em terras brasileiras, o que acontece no dia da morte de Dona Maria I, a Rainha Louca, mãe de Dom João VI, Debret se mostra compromissado com a documentação de um mundo que permanece em grande parte desconhecido. Ao olhar do artista europeu, a natureza exibe-se inacreditavelmente exuberante, grandiosa e indomável. Os nativos surpreendem desde a indumentária ao idioma, da alimentação aos costumes. As nascentes comunidades urbanas se mostram inabordáveis por sua complexa associação de padrões civilizados e bárbaros. Os escravos vendidos no mercado, presentes nas lavouras, a serviço doméstico das casas ou vendendo quitandas e frutas nas ruas, impressionam . Como fixar com tintas e palavras um mundo que não se converte em impressões ordenáveis, que se oferece como um caos diante do século da racionalidade que vira nascer aquele artista?
Diante das dificuldades de traduzir a realidade para sua telas, Debret, mesmo mantendo o viés iluminista que o havia ligado aos enciclopedistas e à Revolução Francesa, projeta um romantismo inesperado nas figuras que retrata. Atribuem-lhe até hoje a responsabilidade pela criação de um índio idealizado que não correspondia à realidade das tribos brasileiras. Suas aquarelas, de fato, nos remetem muito mais ao forte Peri de José de Alencar e aos valentes Timbiras que Gonçalves Dias imortalizou na literatura, que aos índios fixados em fotos pelos irmãos Villas Boas um século depois na Amazônia.
À parte esta romantização, há que se considerar o esforço de Debret que se deslocou durante anos por todo o sudeste brasileiro para documentar o Brasil das primeiras décadas do século XIX. Com observação e entendimento, engenho e arte, juntou às imagens textos que detalham a vida social brasileira em suas múltiplas dimensões: na corte, no trabalho escravo, nas ruas cariocas, no cotidiano do interior, na família. Sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, cuja primeira edição saiu no Brasil em 1840, nove anos depois de o autor ter retornado à França, é dos mais importantes registros de valor documental realizados no período. Cada prancha desenhada e aquarelada pelo pintor foi posteriormente transferida para litografia e acompanhada de um texto descritivo, tornando-se testemunho de um período muito importante da história brasileira.
Referência em seu gênero, a obra continua sendo utilizada como fonte para o entendimento das estruturas de formação do país no século XIX . A combinação de imagens e textos coloca luz sobre um momento de grande importância para o Brasil: aquele em que o então reino se tornava independente de Portugal e os brasileiros começavam a pensar numa forma de contar sua história. Para si mesmos, para os outros. Nascia, de fato, a nação.
Pela qualidade do objeto físico, e pelo que significa enquanto informação, o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, relançado pela Editora Itatiaia depois de trinta anos da última edição, deve ser acolhido como um presente por amantes de história e arte. Contidas pela capa dura protegida em caixa, as 556 páginas garantem ao leitor deleite e conhecimento. Mais do que isso, abre as portas do passado e faz entender que há ainda muita coisa que não passou. O capítulo da escravidão, por exemplo, ainda ressoa forte na vida brasileira