“Seja o que for que penses, creia que é melhor dizê-lo com boas palavras”, disse William Shakespeare. “Leia não para contradizer nem para acreditar, mas para ponderar e considerar”, registrou Francis Bacon.
Shakespeare (1561-1626) e Bacon (1564-1616) foram contemporâneos. Vivendo na mesma época e lugar, é possível que tenham um dia se cruzado numa das esquinas de Londres sem que um soubesse da importância do outro.
E embora o primeiro tenha se dedicado ao teatro e o segundo à filosofia, ambos abordaram em suas obras questões essencialmente inerentes à condição humana, como o amor, o ciúme, a inveja, a melancolia, a vingança, a amizade; também tematizaram as relações sociais e políticas, entre outras, temáticas que vão além de qualquer esfera temporal, o que explica seu eterno sucesso.
O momento histórico pode ser determinante para os artistas. Os dois citados foram favorecidos intensamente por este fator, uma vez que escreveram em pleno apogeu do reinado da rainha Elisabeth I, considerado o tempo de ouro da cultura inglesa.
Hoje os escritores vivem sob o signo da revolução digital e, se brasileiros, enfrentam a adversidade que é viver num país onde o índice de leitura é uma calamidade: 70% dos habitantes daquela a quem chamaram “Pátria Educadora” não leram sequer um livro em 2014. Nos Estados Unidos, onde a educação pública e o hábito de leitura também entraram em declínio, na comparação com outros países afluentes, 76% dos que têm mais de 18 anos leram pelo menos um livro no mesmo período.
A maioria dos não- leitores brasileiros responsabilizou a “falta de hábito”, ao desinteresse de pais e ao sistema educacional. Alguns até lembraram aquele político tão popular no Brasil (tornado depois presidente) que um dia disse ao Flávio Rangel, no Canal Livre, que era muito preguiçoso, até para ler era preguiçoso, e, decididamente, não gostava de ler. O exemplo (des) educa.
Sempre que recebo um livro, depois de ler o título e o nome do autor, entro em contato com o objeto físico. Sinto o tamanho e o cheiro bom do papel, aprecio a capa, retenho-o nas mãos por instantes e louvo a resistência do autor e seu amor à palavra literária. Não raro, também penso nessas novas pesquisas que têm medido a retenção da informação de leitura na página impressa e em tablets. Recentes estudos atestam que a leitura em papel se fixa mais na memória que aquela feita em tela. Quem lê no papel, se lembra melhor do que leu, segundo experiência feita pela norueguesa Anne Mangen e relatada recentemente pela jornalista Lúcia Guimarães.
Então, Filosofia em minutos, da francana Maria de Lourdes Liporoni Martins, lançado em agosto deste ano pela Ribeirão Gráfica, é um desses livros que as mãos seguram de forma confortável, o olfato reconhece como algo familiar, os olhos apreciam desde a capa ilustrada com desenho de coruja, símbolo máximo da sabedoria desde priscas eras. Professora de português, francês, língua e literatura portuguesa, literatura brasileira e infantil, como lemos na contracapa em lilás, a autora tem currículo alentado: é licenciada em letras neolatinas e pedagogia, tendo feito especializações em semântica da língua portuguesa e em literatura brasileira; e lecionado por três décadas em escolas públicas de Campinas, Piracicaba, São Paulo e Franca. Alguns de seus textos forma publicados em onze antologias em Franca e no Rio de Janeiro.
Os que agora me chegam enfeixados no volume citado correspondem na forma ao espírito das “boas palavras” a que aludiu Shakespeare; e no fundo, às expressões literárias que Bacon aconselhou considerar. E este é um verbo expressivo para se usar no mundo da criação, pois sua etimologia nos remete aos astros que estão em constante movimento, como as palavras na mente do escritor e depois na do leitor.
Considero então um parêntese a ser interpretado como abraço, o poema de Letícia Martins e o de Leandro Martins. O da neta abre e o do filho fecha o conjunto de textos de Maria de Lourdes, a mãe-avó-escritora. Da lavra desta, apenas o primeiro exibe título, Deo Gratias. Em seus 83 versos e nove estrofes é um agradecimento à vida que soa como prece- e alguém já disse que agradecer é a mais bela forma de rezar. Seguindo o tom religioso, o segundo fala de rosas e de santidade. O terceiro reflete nossa contínua transformação como seres que têm fases como a lua, em imagens que tanto nos remetem a Cecília Meirelles como nos sugerem Parmênides. O tempo em seus efeitos reaparece em outros poemas, assim como o desejo de escrever, de escarafunchar o interior, de desvelar o que está se oferecendo em mistério para os olhos. Num momento de bom humor, pé na realidade, a autora desabafa: “ quando os filhotes do ninho/ voejam em fuga,/ a gente só os vê em revoadas/ quando eles permitem/ pois o voo é livre/ e eles o são// escrevo por paixão/ apaixonada eu sou/ ainda que nesse mundo cão/ livros não se vendam não”. Depois, em assomo lírico, ordena em sintaxe lusitana: “ sai de baixo/ estou a escrever/ quando escrevo/ me desnudo de máscara/ revelo-me por inteiro/ não me permito censura ou freio/Eu sou eu/ lágrimas ecoam hora a hora/já conhecem a trilha/decoraram trajeto e sentimento/ retê-las é guerra/esquecê-las/ desafio necessário.”
Todos em minúsculas, assim à moda de cummings, os versos às vezes brincam com o som (lave, lave/lágrima minha/lave leve leve lágrima”). Outras,com ditados populares (“não há bem que sempre dure/nem mal que se mantém”; “ conversa pra boi dormir/ isso se ouve frequente”). Ora refazem conceitos (“valores repetidos/não auxiliam não/reconstruir dá trabalho/serviço de elaboração”). Ora expressam uma profissão de fé literária ( escrever é lenitivo/ alívio em busca/ apreensão de mensagens/ intercomunicação”). Ou então assumem condição de relato: “corre à boca miúda/na pequenez do vulgo/ que ela desesperada/ à cata do companheiro/ atrás dele se abocanhou/ na mira do povo ficou/pois o belo/ sumira/ sem vestígios deixar/cúmulo do esnobismo/quem fez uso de escadas rolantes/ nos diversos departamentos das Lojas Lafayette/ e Printemps em Paris/ não tolera escalar/ as nossas “par ici.” Sob qualquer desses aspectos, a autora está continuamente falando de seus sentimentos. O lirismo é um forte traço deste livro, que recebi com dedicatória carinhosa. Agradeço.
No prefácio, Caio Porfírio Carneiro escreve assim sobre Filosofia em minutos: “Vale-se a autora do simples sem ser fácil. Tudo vindo a relevo através da palavra, que é fugaz e eterna. O aparente cantante versejar é uma fulguração sentida que se irmana à alma e ao coração de qualquer leitor. Tudo aqui é transfiguração poética.” Tais palavras, vindas do autor de Trapiá, livro de contos que inovou o gênero e ganhou um Jabuti, são um elogio e tanto.