Nunca tinha imaginado que por razões familiares seria levada a conhecer uma parte do interior de Goiás, estado sobre o qual havia lido apenas fragmentos narrativos. Há menos de dez anos ganhei nora goiana, Milena, cujo pai tem fazenda a cerca de cem km de Brasília, no centro do País. E há cinco, minha sobrinha Tatiana, que é psicóloga e se doutorou em Serviço Social pela Unesp, foi fazer carreira na Universidade Federal, campus de Jataí, sudoeste do Estado.
Foi visitando a fazenda que tive o privilégio de pisar na linha imaginária do Tratado de Tordesilhas, que corta as terras próximas e tem direito à placa onde a gente que gosta de história pode posar para foto. Na primeira vez em terras goianas, realizei antigo sonho e me desloquei até Goiás Velho, para ver a casa da poeta Cora Coralina, hoje transformada em museu; o Palácio do Conde dos Arcos; o Museu de Arte Sacra. Também botei o pé em Corumbá de Goiás, famosa pelo salto e pela Igreja Nossa Senhora da Penha de França, do século XVIII, restaurada recentemente. Depois, em outras ocasiões, estive em Pirenópolis, patrimônio colonial incrustado em região de muitos rios e cachoeiras, verdes brilhantes e céu quase sempre azul. Entre um pulo até Brasília, nossa capital, e outro a Goiânia, uma das cidades mais arborizadas do País, passei por Cocalzinho, minúscula mas emblemática por sugerir como estão se formando as cidades brasileiras nas últimas cinco décadas. Somando espaços e impressões tive uma ideia do que era aquele espaço de Goiás.
No último Carnaval, fui apresentada a outra face goiana, Jataí, nascida do empenho dos pioneiros que seguindo os Caminhos do Anhanguera assentaram-se nas margens dos rios Ariranha e Bom Jardim. Recebiam de graça a terra e alguns bônus, como isenção de impostos por vinte anos. Encaravam o desafio de Pedro II para povoar a região então dominada pelos Caiapós. Aliás, a diminuta Caiapônia, bem ao lado de Jataí, é mais que uma metáfora das políticas públicas que tentaram aculturar os índios; reflete a forma equivocada como são até hoje tratados os verdadeiros donos da terra- seres à parte, mal integrados, resistindo no seu jeito calado. Sobreviventes confusos e tristonhos que vendem seu artesanato pobre dispondo –o em mesas sob as quais acomodam seus filhos pequenos em cestas de palha trançada.
Jataí, que tem hoje 90 mil habitantes, é fruto da última fase da expansão do gado que, vindo do leste, através do rio São Francisco, tomou conta de Minas Gerais e chegou a Goiás e Mato Grosso. Até a terceira década do século XIX, a região, envolta em perigos e mistérios, era de amplo domínio indígena.
Os primeiros desbravadores, chegados em 1836, foram Joaquim Vilela e seu filho José Manoel, procedentes da mineira Lavras do Funil, hoje Coqueiral. Entraram pelo leste, através de Rio Verde, cortaram aqueles sertões e montaram uma fazenda de criação de gado. Um ano depois, vejam só, ali chegava um jovem casal oriundo de Franca, José de Carvalho Bastos e Ana Cândida Gouveia de Moraes. Atravessaram Santana do Paranaíba, em busca de boas terras, e se instalaram às margens do Ribeirão Bom Jardim. Posteriormente formou-se o primeiro núcleo de povoação, com nome de Paraíso. Em 1864 a Freguesia se tornava Distrito. Dezoito anos depois virou município, já então com o nome definitivamente incorporado- Jataí.
Com a palavra “jataí” os caiapós designavam um tipo de abelha que não tinha ferrão e era abundante na região, produzindo mel cuja excelência é cada vez mais louvada pelos apicultores . Os filólogos sustentam que o mesmo substantivo designava também “´árvore de frutos duros”, mas pela antiguidade e constância com que a abelha aparece como emblema da cidade, é de se crer que seja mesmo por conta dela que o topônimo se firmou.
Além desse mel tão procurado pelos chefs por seu sabor peculiar, e pelos nutricionistas que o consideram benéfico à saúde, Jataí tem pimenta de todo tipo e cor que se possa imaginar. Pequi e guariroba, fruto e palmito de simpatias e antipatias bem dosadas a dividir os goianos que os amam ou detestam. Pamonha, curau, chica-doida, um tipo de sopa com tudo-quanto-há, são os mais conhecidos entre os pratos típicos. A curiosa jantinha, composta por carne assada, arroz, tutu, vinagrete e mandioca cozida, aparece por todo canto quando o sol se põe.
Tem grandes termas que lotam nos fins de semana e surpreendem pela quentura das águas. Lindos parques. Dois museus bem conservados em casarões do século XIX- modelos que nos fazem morrer de vergonha do nosso museu francano, que clama há anos por um trabalho eficiente de conservação. Uma catedral que chama a atenção pelo inédito projeto arquitetônico. O belo Memorial JK, homenagem a Juscelino Kubitcheck, que ali fez seu primeiro comício como candidato à presidência da República e desvelou o sonho de construir Brasília. Dois campi – um federal, outro estadual, com estudantes de toda parte, especialmente de São Paulo e Minas.
Tem muita gente do Sul, especialmente gaúchos que plantam milho, soja e cana. Uma parcela da população com fortes traços indígenas. E muçulmanos, refugiados de guerra, que ali já ergueram pequena mesquita e cujas mulheres andam pelas ruas com a cabeça coberta por grandes e escuros lenços, ainda que a temperatura chegue muitas vezes no verão aos 40 graus.
Uma colega de Tatiana define Jataí como o Brasil genuíno, com sua pluralidade e tolerância, mas também com suas gritantes contradições. Há mansões espetaculares, brancas e cintilantes como o Taj Mahal, no meio da terra vermelha. Ao lado, moradias muito precárias, que fazem lembrar o mundo liliputiano. Há uma ONG de Primeiro Mundo, que tem como parceiras fundações norte-americanas, acolhe crianças de 7 a 12 anos, e já ganhou até exposição no MUBE paulistano. Justapostos, índices elevadíssimos de violência contra a mulher, um dos maiores do País. E, mesmo exibindo expressivos indicadores econômicos, graças ao agronegócio, a cidade possui apenas 40% de rede de esgoto, o que faz com que o ar se torne pesado à respiração quando os termômetros ultrapassam os 30 graus, o que é muito comum na maior parte do ano.
Tenho achado positivo empreender este tipo de viagem ao interior. Ali a gente percebe melhor a alma brasileira, esse cadinho onde se mesclaram raças e culturas, coragem e temores, apostas e frustrações, singularidades e cosmopolitismo, selvageria e civilidade. E onde já se erguem algumas vozes buscando destinos mais justos, enquanto as abelhas continuam a fabricar seus méis.