Basta olhar uma criança pequena para constatar que a espontaneidade é seu maior tesouro, aquele mesmo que sábios e poetas encontram depois de muita busca. Manoel de Barros é um exemplo que me surge mais evidente: “Tenho em mim um atraso de nascença/ eu fui aparelhado para gostar de passarinhos/ Prezo insetos mais que aviões/ A velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis”. Conviver com crianças pode representar convite para voltarmos à simplicidade dos primeiros anos, quando éramos inocentes e não nos pesavam as capas da cultura. Dizem com sabedoria os indianos: “Saber demasiado é envelhecer precocemente”.
Estou sempre me lembrando do comportamento de meu neto João, então com cinco anos, no vídeo que gravou de improviso, apenas porque desejou fazê-lo ao me ver na cozinha com os profissionais da imagem que me ajudam na publicação da página Comer Bem, no impresso Comércio da Franca e no portal GCN. Ao quebrar os ovos para seu fetucine alla carbonara e perceber que algumas gemas estouravam na sua mão antes de o ovo cair inteiro na tigela, disse para a câmera: “Ih! Às vezes a gente acerta, às vezes a gente erra!” Verdade incontestável : nada está garantido na face da Terra.
Se a cozinha já era um espaço terapêutico para mim, a partir de então, por conta dessa frase, se fez também lugar para interrogações que vão muito além do arroz com feijão. Descobri que se o preparo de um prato pede a priori ingredientes específicos e alguma vontade de acertar, exige por outro a condição de suportar o erro, de tolerar o estourar das gemas quando precisamos de claras sem nenhuma manchinha amarela.
E por este caminho de reflexão outro dia cheguei à conclusão de que o mundo, este que nos foi dado habitar hoje, anda nos negando em quase todas as suas instâncias o direito ao erro. Cada vez mais somos exigidos a acertar de primeira, seguindo fórmulas preestabelecidas para que nenhum equívoco nos obrigue a repetir tudo outra vez... Entretanto, mesmo com receitas seguidas à risca, o resultado pode não ser o esperado, porque somos humanos e falhamos: podemos nos confundir na dosagem de algum ingrediente; não ligar o forno na temperatura ideal; esquecer a gordura na frigideira um segundo além do desejado; optar por forma de tamanho incompatível com a quantidade de massa disponível. Etc. Ou, como aconteceu com uma moça que trabalhou para mim nos anos 90, entender errado a orientação. Depois de cozinhar cabeças de peixe para fazer um pirão, fui atender a uma chamada telefônica e lhe disse que coasse o caldo. Ela de fato o coou. E me ofereceu o mais horroroso arranjo de escamas, ossos e espinhas que já vi numa peneira. O caldo? Tinha ido embora pelo ralo da pia. Recentemente soube que nunca se esqueceu daquilo. Naquele dia não houve pirão. Mas ela aprendeu para sempre com seu erro.
Por essa e outras tenho aconselhado a cozinha para gente ansiosa e perfeccionista como um dia eu fui, a fazer cobranças cruéis em relação a mim e aos outros, pois intolerante com todos os desacertos. Entre a pia nem sempre impecável como desejaria e o fogão que por muitos motivos pode me negar seu fogo, especialmente diante da faca e do queijo mas distante do apetite, é que venho entendendo como somos precários, pequenos, insignificantes e obtusos diante do Universo perfeito onde existimos milagrosamente por tempo ínfimo e de forma às vezes muito caótica. Somos seres em lenta evolução; ter consciência disso é reconhecer humildemente que o erro integra a lista de escolhas que temos de fazer a todo momento, desde que entra em cena o nosso livre-arbítrio. Escolher é arriscar-se, mas é assim que vamos aprendendo a viver: devagar, errando e corrigindo, da mesma forma como vamos aos poucos acertando a mão nos pratos.
Demora, frustra, angustia, desafia, mas uma hora gratifica. O caminho é custoso até que o bolo da vida chegue bonito à mesa de alguma celebração. Então é justo nos darmos “parabéns”, antes mesmo que outros o façam.